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Até há 2 dias atrás vi muita gente interessada em demitir a Ministra da Administração Interna e muita gente preocupada com o facto de haver quem a quisesse levar à demissão - gente ralada com a crispação que ela despertava, incomodada com as perguntas da imprensa, indignada com os pedidos de demissão, maçada com a pressão de que era alvo, etc.
E dá-me vontade de perguntar: das 3 palavras da frase “morreram cem pessoas”, qual é que ainda não perceberam?
Mas a verdade é que parece que não percebemos.
Falamos de 100 mortos como se fosse um incómodo, uma espécie de contratempo - como se fosse um engarrafamento em Agosto a caminho da praia ou um apagão quando estávamos a ver a Guerra dos Tronos.
O PS diz que não tem responsabilidades apesar de ser o actual governo e de ter sido governo durante décadas no passado; o PSD diz que não tem responsabilidades apesar de ter liderado o último governo e de ter sido governo durante décadas no passado.
Vejo gente a discutir se o discurso do PR prejudica a esquerda ou se certo jornalista é de direita, como se os mortos tivessem cor política.
Morreram 100 pessoas e nos posts e caixas de comentários dos nossos amigos há quem se entretenha com o debatezinho de merda entre esquerda e direita.
E foi aí que percebi como de facto o interior do País está abandonado.
Morreram 100 pessoas, destruíram-se dezenas de milhares de vidas e nós estamos a discutir minudências.
O interior não foi só abandonado pelo poder político, foi abandonado por nós.
A primeira geração que migrou para o Litoral ainda foi mantendo alguma proximidade com aqueles lugares, a segunda geração talvez lá tenha ido brincar nas férias de verão e mantém alguma relação afectiva, mas a terceira geração já nem sabe onde ficam nem quer saber.
No fundo foi como se esses sítios tivessem morrido para a maior parte de nós.
E é por isso que estas 100 mortes, ocorridas muitas delas nesses sítios que para nós não existem, não despertem assim tanta urgência e permitem que o status quo do poder político se mantenha.
Morreram 100 pessoas, é certo, mas não eram propriamente pessoas como "nós".
Se um maluco qualquer se tivesse feito explodir no Chiado matando 10 ou 20 pessoas a nossa indignação colectiva seria provavelmente maior.
Mas não... eram só 100 pessoas, muitas delas idosas e quase sozinhas a viverem em lugares recônditos com nomes de terras que nos dão vontade de rir e que nem sabíamos que existiam.
O interior desertificou-se mas nós não o abandonámos apenas fisicamente; abandonámo-lo afectivamente e deixámos aquelas pessoas para trás.
Tornámo-nos tão urbanos que nos tornámos insensíveis a tudo o que não é o nosso modo de vida urbano.
A Dona Alzira que morreu não ia a discotecas à beira Tejo e o Sr. Joaquim que perdeu a quinta e o trator não ia a jantares gourmet em restaurantes da moda.
Também para que raio queria ele um trator? Nós aqui em Lisboa nunca precisámos de trator...
Ardeu uma serração e ficaram umas centenas de pessoas desempregadas?
Para nós não há problema porque as prateleiras do IKEA estão sempre cheias.
Ardeu um aviário com os animais lá dentro e esfumaram-se os empregos daquelas pessoas?
Paciência; se calhar há quem pense que os frangos nascem em embalagens de plástico já sem penas nem miudezas, e aqueles trabalhadores não são gente para ir ao Web Summit.
Desligámo-nos do nosso País e ele deixou de nos pertencer.
Morreram 100 pessoas em terras onde provavelmente nunca fomos, e havia gente preocupada com a chatice e as consequências que isso acarreta para quem estava no Terreiro do Paço ou em São Bento.
Uns queriam manter a Ministra para mostrar a solidez do governo, outros queriam provocar a demissão para abrir uma potencial brecha de fragilidade no governo.
Todos os partidos têm a sua agenda particular, os seus interesses e as suas clientelas, mas sabemos que 45% da população portuguesa vive nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.
E se entretanto morreram 100 pessoas fora dos grandes centros, eu sinto que de alguma forma todos nós as abandonámos também.
É claro que o poder político as abandonou há décadas; mas o poder político só as abandonou porque sabe que aquelas pessoas e aqueles lugares foram abandonados por nós e deixaram de interessar à maioria.
Criámos uma distância tremenda entre “nós” e “eles”, e temo que essa distância nos pode vir a matar enquanto comunidade.
Mas é claro que ainda vamos bem a tempo de nos voltarmos a apaixonar pelo nosso País, pelos seus lugares, pelas suas gentes e pela sua diversidade.
Parecendo que não, já cá andamos há quase 900 anos...
O Pinhal de Leiria deixou de existir.
Não me ocorreria metáfora mais grotesca para descrever este ano e a falência das nossas instituições.
Para os outros incêndios iam surgindo sempre explicações: donos negligentes, matas por limpar, território desordenado, interior desertificado, falta de cadastro florestal, micro propriedades , hectares com donos desconhecidos, donos que nem sabem que são proprietários florestais, condições meteorológicas adversas, acessos muito difíceis, etc.
E nós vamos assimilando essas justificações – elas fazem sentido.
Mas agora o Pinhal de Leiria deixou de existir.
O Pinhal de Leiria era muito mais do que um conjunto de árvores; aquilo não era uma mata, não era uma área florestal – era um monumento histórico, era património nacional.
Um projeto nacional com 700 anos, o primeiro e mais ambicioso projeto ecológico da nossa História: no século XIII foi mandado plantar um pinhal com o objectivo de travar o avanço das dunas, proteger a cidade de Leiria e os seus campos agrícolas. Esta ideia, visionária e revolucionária do séc. XIII, morreu ontem.
E não podia.
Eu sempre estive (mais ou menos) descansado em relação à segurança do Pinhal de Leiria.
Sabemos que o dono é o Estado, o dono tem meios ilimitados para o proteger, a região é habitada, não está abandonada nem desordenada, os acessos são bons, a zona é plana, enfim... era impossível que o Estado deixasse arder o Pinhal de Leiria.
Até ontem.
E é por isso que o fim anunciado do Pinhal de Leiria é tão grave.
Quando há um incendio em Mação ou Oleiros, é o Pais que arde.
Mas quando arde o Pinhal de Leiria, é o Estado que arde.
Já nem é uma questão de culpar ou demitir.
Ontem ardeu o Estado Português.
Ardeu o Governo e a Presidência, ardeu o Tribunal Constitucional e a Assembleia da República – o Estado Português deixou oficialmente de funcionar como se tivesse sido suspenso.
Ligamos a TV, vemos as notícias e parece que a realidade é virtual como se estivéssemos a ver uma série de ficção com imagens de um qualquer país em guerra.
Aquilo (isto) já não parece ser um País a sério.
Ontem deflagraram 523 incêndios. Como dizia um antigo Primeiro Ministro, é fazer as contas: são mais de 20 incêndios por hora - um novo incêndio a cada 3 minutos.
É claro que não há forma de combater uma monstruosidade destas; é irracional e insano. Não estou a desculpabilizar ninguém, longe disso, mas não sei se haverá algum País no mundo capaz de combater eficazmente um novo fogo florestal a cada 3 minutos.
E isso só reforça a ideia de descontrolo; parece que o Estado deixou de existir e estamos por nossa conta, cada um por si.
Ontem ardeu o Pinhal de Leiria.
Que é como quem diz, ontem ardeu o Estado Português.
E eu acho que o Estado Português nem sequer deu conta disso...
VAMOS AJUDAR?!?
A Unicef só nos escreve muito de vez em quando.
Pelo Natal, a agradecer o apoio prestado e a pedir para o renovar, ou quando há merda da grande.
Tipo... merda tão grande que nem uma organização do tamanho da Unicef/ONU consegue reunir os meios necessários para acudir a uma emergência.
Em Myanmar existe uma comunidade, os rohingya, que não possui direitos de cidadania: estão impedidos de viajar sem autorização oficial, impedidos de trabalhar em instituições públicas ou privadas, impedidos de possuir terras e impedidos de aceder ao sistema de educação.
Sendo alvo de perseguições desde há décadas, esta comunidade começou a ser alvo de uma operação de limpeza étnica sistemática a partir de 2013.
Diz a carta da Unicef:
“A violência contra este povo empobrecido e perseguido há anos intensificou-se enormemente nas últimas semanas. Desde 25 de Agosto mais de 410.000 rohingyas, dos quais 260.000 são crianças, atravessaram a fronteira com a roupa que tinham no corpo.
Contam histórias horríveis de rapto, de morte, de casas incendiadas.
E o êxodo continua com novas chegadas todos os dias ao Bangladesh.
A maioria das crianças chega só com as mães, pois os pais ou estão desaparecidos, foram mortos ou ficaram em Myanmar, mas algumas chegam sozinhas. Para além da dor e do trauma que sentem neste momento, estas crianças estão expostas a doenças, fome, exploração, deixando-as num enorme estado de vulnerabilidade.”
Podíamos abrir um debate sobre responsabilidades e culpas, questões políticas, religiosas e étnicas, mas este não é manifestamente o local (nem o momento).
Neste momento há centenas de milhares de crianças num estado desesperado e nós até nos podemos queixar da inércia da chamada “comunidade internacional”.
Acontece que nós também somos a tal “comunidade internacional”.
Para que a comunidade internacional seja algo de que nos possamos orgulhar, podemos dar um primeiro passo: ajudar.
Façamos a nossa parte antes de nos queixarmos das falhas dos outros.
Todos temos um cartão multibanco e todos podemos contribuir consoante as nossas possibilidades.
Todos os donativos ajudam mesmo os que possam parecer insignificantes; a título de exemplo, se 84 pessoas oferecerem um euro (1€) a Unicef consegue colocar no terreno mais 20.000 pastilhas de purificação de água.
Por outras palavras, todos os euros ajudam a salvar vidas.
Em vez de nos queixarmos de que o telejornal só dá desgraças, vamos ajudar um bocadinho a minorar esta tragédia.
Vamos ser um bocadinho mais cidadãos e mais solidários – vão ver que depois de ajudar se sentem melhor.
Com sorte até vão querer fazer disso um hábito.
VAMOS AJUDAR?!?