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Esta semana fomos todos confrontados com a divulgação de um vídeo (por parte do Correio da Manhã) onde se vê uma jovem a ser agredida sexualmente num autocarro enquanto o resto dos passageiros se ri e incentiva o agressor.

Perante tamanha violência, confesso que me apeteceu comprar umas caixas de acendalhas e reservar o Terreiro do Paço para uns autos de fé onde caberiam o agressor, muitos dos passageiros bem como os responsáveis pelo pasquim.

Contive-me muito para não escrever sobre o assunto e ainda bem que o fiz – não há nada como conter o primeiro impulso incendiário e deixar assentar alguma poeira para depois conseguir refletir com um pouco mais de frieza (ou lucidez) sobre o assunto.

E como tantas vezes acontece quando me ponho a pensar nas coisas, acabo com muito mais dúvidas do que certezas.

 

As poucas certezas que tenho são as de que o agressor é uma besta e um predador, os amiguinhos não são melhores do que ele e o Correio da Manhã é um esgoto a céu aberto.

 

Ainda assim, há várias perversidades no meio disto tudo; vamos por partes...

 

Estou convencido que é o vídeo que faz a notícia. Sem vídeo não havia indignação e tudo se resumiria a um não-acontecimento ou a uma pequena nota de rodapé fazendo alusão a um alegado abuso, uma alegada vítima e um alegado agressor; seria uma pequeníssima notícia canibalizada pelo frenesim das demais notícias do dia.

Mas por causa da existência e publicação do vídeo, aquela agressão transformou-se na notícia do dia provocando ondas de choque e indignação, mas também de reflexão e de tomada de consciência do muito que temos que fazer se quisermos caminhar para uma sociedade que se pretende civilizada (o que é sempre benéfico).

Experimentem a googlar  “jovem violada” para verem quantas dezenas ou centenas de violações (bem mais graves) foram apenas notas-de-rodapé nos media sem terem gerado esta onda de reações...

Por outras palavras, o problema para mim pode nem estar tanto na divulgação do vídeo (no seu site o CM distorceu as imagens a ponto de ser impossível identificar a vítima) mas sim na forma como é feito e no órgão onde é feito.

Se um meio de comunicação social de referencia tivesse divulgado o vídeo com as imagens distorcidas e uma nota do conselho de redação a explicar que o faziam não pelo exibicionismo grotesco mas antes como forma de alerta contra todo e qualquer abuso sexual e para que se promova uma discussão sobre o nosso papel enquanto sociedade na luta contra este tipo de abusos, talvez o efeito não fosse tão perverso.

Mas ser o Correio da Manhã a fazê-lo com o teaser “VEJA O VÍDEO” muda tudo.

A perversidade é precisamente essa: a publicação por parte do CM é apenas um nojo, mas sem isso não estaríamos a falar na urgência de combater a violência sexual, o preconceito de género e a objetificação da mulher.

 

O drama da vítima é o mais importante no meio disto tudo e também não sei se esta onda de indignação (ou de solidariedade e compaixão pelo que lhe aconteceu) a ajuda muito.

O crime terá ocorrido há uns dias e, pelo que sabemos, não foi feita nenhuma queixa.

Mas a partir do momento em que outras organizações pegam neste caso concreto e procuram que as autoridades atuem, será que estão a agir de acordo com a vontade da vítima?

Até pode ser que a vítima não tenha tido inicialmente coragem para formalizar uma queixa e pode ser que esta onda de solidariedade lhe dê a força e o apoio de que precisa para o fazer.

Mas também pode acontecer que a vítima prefira tentar esquecer o que aconteceu (o que também seria legítimo) e se calhar estamos todos a meter-nos na vida dela e a tentar empurrá-la para um processo que ela pode não querer assumir.

Aparentemente a PJ está a tratar o caso como crime semi-público pelo que depende de queixa da vítima.

Mas se condicionarmos a vítima para avançar com um processo crime que a levasse a depor e a dar a cara publicamente, não estaremos a agredi-la novamente?

Não se estará a forçar a vítima a uma exposição acrescida e a uma nova humilhação que ela pode estar a tentar evitar a todo o custo?

Só a vítima o sabe e da vontade dela pouco sabemos o que torna tudo isto ainda mais perverso.

 

A última perversidade advém do abuso de linguagem a que assisti nalguns posts e comentários (legitimamente) indignados em que se falava abertamente de violação.

Não, meter a mão dentro das calças da vítima não é uma violação.

O mal têm definições e graduações para que saibamos do que se está a falar.

Acontece o mesmo com os crimes.

Aquilo que aconteceu será um acto de violência sexual, uma agressão sexual, uma humilhação sexual (não faltarão adjectivos) e o facto de ter sido filmado e divulgado só agrava a situação.

Mas chamar-lhe violação é menosprezar, ainda que involuntariamente, o drama e a violência de que foram vítimas todas as mulheres que foram de facto violadas.

E isto não tem a ver com pôr paninhos quentes ou diminuir a gravidade dos factos – é apenas trata-los com um mínimo de rigor.

Nós não damos nomes aos actos (ou aos crimes) só porque eles nos chocam.

Uma agressão física, por grotesca e violenta que fosse, não passava a ser homicídio só porque nos indigna muito.

Há uns tempos uma cineasta francesa realizou uma curta-metragem, seguramente bem intencionada e com o intuito de alertar consciências para o problema das violações dentro do casal; mas para tornar o seu grito de alerta mais dramático, acaba por colocar praticamente no mesmo plano moral e ético a cena de violação (e brutal espancamento) do filme Irreversível e uma cena de sexo entre um casal de namorados em que ela não está com muita vontade, começa por dizer que não mas acaba por aceder.

Ela querer explicar que também existe violação dentro do casamento (e é claro que existe); mas ao filmá-la daquela forma trata a violação como se fosse apenas um contratempo, uma chatice, uma queca que não estava a apetecer mas que se acaba por deixar acontecer.

E esta leviandade de desvalorizar a violação parte muitas vezes das próprias mulheres; têm tanta vontade de se revoltar (legitimamente) contra a proliferação de agressões sexuais que exageram na adjectivação para provocar o choque e acentuar a gravidade do fenómeno.

E isso é perverso.

 

Faz um bocado lembrar as pessoas que se chocam tanto com atropelos aos direitos humanos que perdem a noção da realidade e desatam a comparar tudo ao holocausto.

Não, a guerra na Síria não é o holocausto. É horrível ver crianças a morrer em directo na TV, mas aquela monstruosidade não é o holocausto.

Não, meter a mão dentro das cuecas de uma miúda e apalpá-la não é uma violação. É horrível ver uma miúda indefesa a ser humilhada e abusada com uns palhaços a filmarem e grunhirem de entusiasmo, mas aquilo não é uma violação.

 

Senão, quando acontece de facto uma violação, chamamos-lhe o quê?

Como é que exageramos? Que nome damos?

 

Para acabar recomendo este vídeo.

Só porque sim. É raro ver um violador e uma vítima a darem a cara.

É preciso ter muita coragem para assumir que se sofreu uma violência do tamanho da violação, mas também é preciso coragem (ainda mais rara) para assumir que todos temos um lado negro que pode vir à superfície.

Vale a pena...

 

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publicado às 00:24


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