Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Rebentou o escândalo a propósito da reconstrução de habitações destruídas nos incêndios de Pedrogão.
Mas pelo que ouvi nas notícias, estamos a falar de umas 7 casas num universo de mais de 260 habitações que estão a ser (ou já foram) reconstruídas.
Se devia ter acontecido? Claro que não!
Se deve ser investigado e os prevaricadores punidos? Claro que sim!
Mas valerá a pena empolar aqueles 2 ou 3% de eventuais irregularidades a ponto de perdermos de vista aquilo que foi a tragédia daquelas populações e o exemplo de generosidade da sociedade civil que se mobilizou para tentar minorar o seu drama?
Valerá a pena criar este sentimento de desconfiança generalizada em relação à utilização dos donativos?
Valerá a pena desvirtuar a realidade e falar em “donativos desviados” (li no Expresso) como se o dinheiro tivesse sido gasto em algo que não a reconstrução de casas?
Penso que não.
Ontem não se falava de outra coisa e acho que este clima de histeria pode ser altamente contraproducente para o espírito de generosidade de um povo e minar a confiança em iniciativas de generosidade que no futuro seja importante acarinhar.
Aliás, habituado que estou às derrapagens orçamentais em Portugal, até acho que 2 ou 3% de utilização de fundos em processos não-prioritários é um bom desempenho.
Até porque não há sistemas perfeitos; por muita cautela que se tenha estaremos sempre à mercê de alguns abusos e do aproveitamento da nossa boa fé por parte de pessoas com menos escrúpulos.
É verdade que estamos no patamar da náusea e do nojo quando alguém se aproveita desta situação para seu benefício.
Mas se querem que vos diga muito honestamente, aquelas pessoas que inventaram moradas para poderem beneficiar de subsídios aos quais não tinham direito para reconstruir as casas de Pedrogão podem sempre dizer que se inspiraram no exemplo moral dos deputados da nação.
Afinal de contas muitos deputados inventam moradas para ganharem subsídios e ajudas de custo às quais não têm direito, e até o Presidente da Assembleia da República (que é a 2ª figura do Estado Português) veio dizer que não faz mal e que está tudo bem assim porque basta a palavra dada pelos próprios deputados.
Queriam o quê?!?
Adiante...
Obrigado à comunicação social pela investigação e pela denúncia e obrigado ao Ministério Público por estar a investigar.
Mas agora, se não se importam, vamos passar ao assunto seguinte.
Sob pena de na próxima tragédia o povo português se mostrar desconfiado e pouco solidário pelo facto de temer que 2 ou 3% dos recursos poderem vir a ser utilizados em projetos que, sendo legítimos, não são exatamente os prioritários.
Até há 2 dias atrás vi muita gente interessada em demitir a Ministra da Administração Interna e muita gente preocupada com o facto de haver quem a quisesse levar à demissão - gente ralada com a crispação que ela despertava, incomodada com as perguntas da imprensa, indignada com os pedidos de demissão, maçada com a pressão de que era alvo, etc.
E dá-me vontade de perguntar: das 3 palavras da frase “morreram cem pessoas”, qual é que ainda não perceberam?
Mas a verdade é que parece que não percebemos.
Falamos de 100 mortos como se fosse um incómodo, uma espécie de contratempo - como se fosse um engarrafamento em Agosto a caminho da praia ou um apagão quando estávamos a ver a Guerra dos Tronos.
O PS diz que não tem responsabilidades apesar de ser o actual governo e de ter sido governo durante décadas no passado; o PSD diz que não tem responsabilidades apesar de ter liderado o último governo e de ter sido governo durante décadas no passado.
Vejo gente a discutir se o discurso do PR prejudica a esquerda ou se certo jornalista é de direita, como se os mortos tivessem cor política.
Morreram 100 pessoas e nos posts e caixas de comentários dos nossos amigos há quem se entretenha com o debatezinho de merda entre esquerda e direita.
E foi aí que percebi como de facto o interior do País está abandonado.
Morreram 100 pessoas, destruíram-se dezenas de milhares de vidas e nós estamos a discutir minudências.
O interior não foi só abandonado pelo poder político, foi abandonado por nós.
A primeira geração que migrou para o Litoral ainda foi mantendo alguma proximidade com aqueles lugares, a segunda geração talvez lá tenha ido brincar nas férias de verão e mantém alguma relação afectiva, mas a terceira geração já nem sabe onde ficam nem quer saber.
No fundo foi como se esses sítios tivessem morrido para a maior parte de nós.
E é por isso que estas 100 mortes, ocorridas muitas delas nesses sítios que para nós não existem, não despertem assim tanta urgência e permitem que o status quo do poder político se mantenha.
Morreram 100 pessoas, é certo, mas não eram propriamente pessoas como "nós".
Se um maluco qualquer se tivesse feito explodir no Chiado matando 10 ou 20 pessoas a nossa indignação colectiva seria provavelmente maior.
Mas não... eram só 100 pessoas, muitas delas idosas e quase sozinhas a viverem em lugares recônditos com nomes de terras que nos dão vontade de rir e que nem sabíamos que existiam.
O interior desertificou-se mas nós não o abandonámos apenas fisicamente; abandonámo-lo afectivamente e deixámos aquelas pessoas para trás.
Tornámo-nos tão urbanos que nos tornámos insensíveis a tudo o que não é o nosso modo de vida urbano.
A Dona Alzira que morreu não ia a discotecas à beira Tejo e o Sr. Joaquim que perdeu a quinta e o trator não ia a jantares gourmet em restaurantes da moda.
Também para que raio queria ele um trator? Nós aqui em Lisboa nunca precisámos de trator...
Ardeu uma serração e ficaram umas centenas de pessoas desempregadas?
Para nós não há problema porque as prateleiras do IKEA estão sempre cheias.
Ardeu um aviário com os animais lá dentro e esfumaram-se os empregos daquelas pessoas?
Paciência; se calhar há quem pense que os frangos nascem em embalagens de plástico já sem penas nem miudezas, e aqueles trabalhadores não são gente para ir ao Web Summit.
Desligámo-nos do nosso País e ele deixou de nos pertencer.
Morreram 100 pessoas em terras onde provavelmente nunca fomos, e havia gente preocupada com a chatice e as consequências que isso acarreta para quem estava no Terreiro do Paço ou em São Bento.
Uns queriam manter a Ministra para mostrar a solidez do governo, outros queriam provocar a demissão para abrir uma potencial brecha de fragilidade no governo.
Todos os partidos têm a sua agenda particular, os seus interesses e as suas clientelas, mas sabemos que 45% da população portuguesa vive nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.
E se entretanto morreram 100 pessoas fora dos grandes centros, eu sinto que de alguma forma todos nós as abandonámos também.
É claro que o poder político as abandonou há décadas; mas o poder político só as abandonou porque sabe que aquelas pessoas e aqueles lugares foram abandonados por nós e deixaram de interessar à maioria.
Criámos uma distância tremenda entre “nós” e “eles”, e temo que essa distância nos pode vir a matar enquanto comunidade.
Mas é claro que ainda vamos bem a tempo de nos voltarmos a apaixonar pelo nosso País, pelos seus lugares, pelas suas gentes e pela sua diversidade.
Parecendo que não, já cá andamos há quase 900 anos...
O Pinhal de Leiria deixou de existir.
Não me ocorreria metáfora mais grotesca para descrever este ano e a falência das nossas instituições.
Para os outros incêndios iam surgindo sempre explicações: donos negligentes, matas por limpar, território desordenado, interior desertificado, falta de cadastro florestal, micro propriedades , hectares com donos desconhecidos, donos que nem sabem que são proprietários florestais, condições meteorológicas adversas, acessos muito difíceis, etc.
E nós vamos assimilando essas justificações – elas fazem sentido.
Mas agora o Pinhal de Leiria deixou de existir.
O Pinhal de Leiria era muito mais do que um conjunto de árvores; aquilo não era uma mata, não era uma área florestal – era um monumento histórico, era património nacional.
Um projeto nacional com 700 anos, o primeiro e mais ambicioso projeto ecológico da nossa História: no século XIII foi mandado plantar um pinhal com o objectivo de travar o avanço das dunas, proteger a cidade de Leiria e os seus campos agrícolas. Esta ideia, visionária e revolucionária do séc. XIII, morreu ontem.
E não podia.
Eu sempre estive (mais ou menos) descansado em relação à segurança do Pinhal de Leiria.
Sabemos que o dono é o Estado, o dono tem meios ilimitados para o proteger, a região é habitada, não está abandonada nem desordenada, os acessos são bons, a zona é plana, enfim... era impossível que o Estado deixasse arder o Pinhal de Leiria.
Até ontem.
E é por isso que o fim anunciado do Pinhal de Leiria é tão grave.
Quando há um incendio em Mação ou Oleiros, é o Pais que arde.
Mas quando arde o Pinhal de Leiria, é o Estado que arde.
Já nem é uma questão de culpar ou demitir.
Ontem ardeu o Estado Português.
Ardeu o Governo e a Presidência, ardeu o Tribunal Constitucional e a Assembleia da República – o Estado Português deixou oficialmente de funcionar como se tivesse sido suspenso.
Ligamos a TV, vemos as notícias e parece que a realidade é virtual como se estivéssemos a ver uma série de ficção com imagens de um qualquer país em guerra.
Aquilo (isto) já não parece ser um País a sério.
Ontem deflagraram 523 incêndios. Como dizia um antigo Primeiro Ministro, é fazer as contas: são mais de 20 incêndios por hora - um novo incêndio a cada 3 minutos.
É claro que não há forma de combater uma monstruosidade destas; é irracional e insano. Não estou a desculpabilizar ninguém, longe disso, mas não sei se haverá algum País no mundo capaz de combater eficazmente um novo fogo florestal a cada 3 minutos.
E isso só reforça a ideia de descontrolo; parece que o Estado deixou de existir e estamos por nossa conta, cada um por si.
Ontem ardeu o Pinhal de Leiria.
Que é como quem diz, ontem ardeu o Estado Português.
E eu acho que o Estado Português nem sequer deu conta disso...