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A verdade é que algo no sistema falhou no caso do Armando Vara.
Não era suposto ele ser preso.
Quando o poder político cria as leis fá-lo naturalmente com o objectivo de servir certos interesses: umas vezes as leis servem os interesses da comunidade, outras vezes as leis servem os interesses de pequenos grupos que têm o (enorme) poder de influenciar a feitura das leis.
Uma coisa é certa: ninguém quer ser preso.
É por isso natural que o poder político faça leis que, na prática, quase impedem os políticos (e os seus amigos) de chegarem a ser presos – é o caso manifesto da lei que prevê as prescrições dos crimes.
A prescrição de crimes é uma ferramenta utilizada pelo poder político para assegurar que as elites (que têm poder político ou económico) dificilmente venham a cumprir penas pelos crimes que eventualmente cometam.
É claro que as leis são gerais e abstratas e a prescrição se aplica, em teoria, a todos os crimes e a todos os arguidos. A questão é que a maior parte dos criminosos não tem meios para pagar os bons advogados, os incidentes processuais e os recursos para tribunais superiores que depois, com o passar do tempo, asseguram a prescrição dos seus crimes – isto é, a maior parte dos criminosos não tem dinheiro para comprar a sua impunidade.
Sendo assim, a figura jurídica da prescrição de crimes aplica-se quase exclusivamente à elite política e financeira do País.
Quando estoirou o “caso BCP” já se sabia que Jardim Gonçalves sairia incólume porque tudo acabaria por prescrever, como veio a suceder.
Oliveira e Costa já foi condenado a 27 anos de prisão mas continua em liberdade e todos sabemos que dificilmente irá preso. Não lhe faltam recursos financeiros para interpor recursos judiciais e, com 83 anos, daqui a uns tempos pode sempre alegar que está velho e doente.
E se alguém se desse à maçada de fazer uma sondagem sobre o que os portugueses acham que vai acontecer a Ricardo Salgado, a maioria (senão a totalidade) responderia que não vai acontecer nada. Não se trata de tentar antecipar se cometeu ou não algum crime e se será ou não condenado; trata-se da certeza de saber que, mesmo que os tenha cometido e que seja condenado nas primeiras instâncias, nunca pagará de facto por eles.
É por isso natural que Armando Vara esteja indignado. Ele foi ministro e banqueiro, tem um currículo que à partida o tornaria intocável perante os tribunais portugueses.
O sistema foi criado para assegurar que pessoas como ele não iriam presas e, aparentemente, o sistema falhou.
Neste sentido a sua detenção chega a ser perversa porque acaba por branquear o funcionamento da justiça e a razoabilidade da lei das prescrições.
Armando Vara é uma espécie de mula para o poder político e financeiro de Portugal.
Por vezes os traficantes sacrificam um pequeno correio de droga para distraírem as autoridades e facilitarem a passagem de um carregamento maior noutro local.
Apesar de o seu caso ser uma excepção, Armando Vara será usado como um “exemplo” do suposto funcionamento de uma justiça cega que afinal até prende os poderosos, assegurando que a lei das prescrições continua a garantir a impunidade de (quase) todos os outros.
Agora o povo está entretido a falar da prisão do Vara e até dorme mais descansado e confiante.
Enquanto isso, outros crimes de gente mais poderosa e influente prescrevem discretamente nas gavetas dos tribunais.
Não haverá por aí muita gente que goste menos do Bruno de Carvalho do que eu (como facilmente se percebe pelo texto que escrevi aqui).
Ainda assim, e independentemente do resultado das investigações e dos processos em curso, não gosto nada da imagem de uma “justiça” que se parece pôr em bicos de pés para dar nas vistas. Bruno de Carvalho já tinha afirmado a sua disponibilidade para ser interrogado onde e quando as autoridades judiciais quisessem.
Prendê-lo num domingo à tarde para ser ouvido dois dias depois é algo que para mim não faz sentido, a menos que seja explicado.
Fez-me lembrar a prisão do Paulo Pedroso há uns anos em directo em plena AR; na altura pareceu que o principal objectivo era mostrar o magistrado justiceiro quando seria perfeitamente possível levar o suspeito a depor e/ou prendê-lo sem aquele circo em direto nas televisões.
Desta vez, ou existia a suspeita fundada de que BdC poderia fugir do pais ontem à noite ou então poderia ser intimado a depor hoje (ou detido para interrogatório) - tudo o resto é excesso para consumo mediático que pouco enobrece a justiça.
E muito honestamente, a última coisa que me apetecia era que a figura mais sinistra da história do meu clube (e uma das mais sinistras da história recente do meu país) aparecesse agora no papel de “vitima”...
P.S. penso que o cartoon é do Henrique Monteiro, aqui do sapo - eu só acrescentei as grades...
Temos no ar uma nova polémica: a presença de magistrados nos órgãos sociais do Sporting está a causar perplexidade a algumas pessoas.
E a mim, confesso, causa-me perplexidade a perplexidade deles, nomeadamente depois das entrevistas de Manuel Ramos Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes e de Ricardo Costa, Diretor do Expresso.
Com declarações um bocado confusas e algo manipuladoras, dão a entender que estes magistrados fazem parte da Direção do Sporting (e não fazem) ou que vão lidar com a gestão do futebol (e não vão).
Os órgãos para os quais foram eleitos são de jurisdição interna do clube: a Mesa da Assembleia Geral e o Conselho Fiscal e Disciplinar. O primeiro é o órgão que convoca e gere as Assembleias Gerais do Clube, e o segundo é o órgão que fiscaliza as contas e o Conselho Diretivo, e aplica medidas disciplinares aos sócios..
Eu até poderia perceber que existissem reservas se algum magistrado tivesse sido nomeado para cargos executivos ou de representação institucional do clube – mas não é manifestamente o caso.
Aliás, a maior parte das pessoas só sabe que estes quatro cidadãos são magistrados porque alguém decidiu fazer disso “notícia”.
Quantos de vós sabem por exemplo, sem ir ao Google, como se chama o vice-presidente da Mesa da Assembleia Geral do FC Porto e qual a sua profissão?
Pois...
A mim tanto se me dá que o vice-presidente do Conselho Fiscal e Disciplinar do Porto ou do Farense seja desembargador ou advogado, ou que o secretário da Mesa da Assembleia Geral do Benfica ou do Belenenses seja procurador ou notário – são órgãos jurisdicionais internos dos clubes cuja ação se limita à esfera interna de cada instituição.
Da mesma forma que não me incomoda nada que um magistrado participe nos órgãos sociais de outras associações como corpos de bombeiros, ranchos folclóricos, cooperativas de agricultores ou outros se for essa a sua vontade.
O presidente do sindicato dos juízes está contra esta participação por achar que ela pode beliscar a imagem que os cidadãos têm da justiça.
Mas se querem que vos diga, eu acho que a imagem da justiça fica muito mais prejudicada por exemplo quando um juiz desembargador afirma num acórdão que numa violação “a ilicitude [praticada] não é elevada”. A sério, acho muito mais grave o facto de existirem magistrados que acham que a violação não é um crime grave.
E sim, é a mesma pessoa: o presidente do sindicato dos juízes que acha preocupante um magistrado participar nos órgãos sociais de um clube é o mesmo magistrado que acha que 2 tipos violarem uma mulher na casa de banho de uma discoteca é de uma ilicitude mediana.
Ele lá terá as suas prioridades mas por mim estamos conversados...
Quanto a Ricardo Costa, usa como argumento a existência de investigações judiciais e o emblemático caso e-toupeira.
Isto é, para explicar que seria imprudente envolver magistrados na vida interna de um clube, Ricardo Costa usa como exemplo um caso onde não está envolvido nenhum magistrado e que demonstra precisamente que ninguém precisa de magistrados para aceder a informação judicial privilegiada e usá-la indevidamente em benefício de um clubes ou de qualquer outra organização.
Ricardo Costa quis apoiar-se na realidade para defender a sua tese, a realidade é que não estava para aí virada...
Mas Ricardo Costa afirma que estes 4 magistrados participam “ativamente na atividade do ponto de vista de uma direção” e isso é falso; são apenas membros de órgãos sociais que se relacionam exclusivamente com os restantes órgãos internos do clube e que aplicam apenas os regulamentos internos do clube.
Acho por exemplo que a credibilidade da justiça ficou mais abalada com a substituição pouco transparente da Procuradora Geral da República. E acho curioso que o Ricardo Costa que tem uma opinião tão forte e veemente e com tantas certezas absolutas quanto à participação dos magistrados nos órgãos sociais dos clubes consiga não ter opinião formada sobre a mudança da PGR, tirando umas evidências sobre o perigo de politização do cargo, daquelas que até o Donald Trump ou a Lili Caneças subscreveriam.
Para Ricardo Costa o que é mesmo preocupante é a possibilidade da acta da reunião da Assembleia Geral da Académica ser escrita por um sócio da briosa que é magistrado lá em Coimbra.
Ui, isso é que mina a confiança dos cidadãos na justiça...
Mas lá está, cada um tem as suas prioridades.
Resumindo, a mim não me incomoda que os magistrados participem em órgãos sociais internos de clubes ou associações, e acredito que já vários clubes os tenham tido nos seus órgãos sem que daí tenha vindo nenhuma suspeita ou descredibilização da justiça ou da função dos magistrados.
Todos os males da justiça fossem esses...
Podemos passar à próxima polémica?